Século XXI: A mediação de conflitos e outros métodos não-adversariais de resolução de controvérsias*

Tania Almeida

Consultora. Docente e Supervisora em Mediação. Diretora-Presidente do MEDIARE – Diálogos e Processos Decisórios e Integrante da Vice-Presidência do CONIMA – Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem.

Introdução

Tenho muito interesse e prazer em localizar as idéias e os movimentos culturais em seu tempo. Dirimir conflitos incluindo a figura de um terceiro entendido como imparcial que atue facilitando o diálogo é idéia milenar. A Mediação de Conflitos, instrumento de negociação que se vale também da figura do terceiro imparcial é, no entanto, uma jovem de pouco mais de trinta anos. À época, ela foi recriada como um processo estruturado de resolução de controvérsias, possuidor de ética e procedimentos próprios.

A demanda de novos instrumentos de negociação ocorrida na segunda metade do século passado deveu-se, também, às fronteiras cada vez mais tênues entre as culturas e os mercados, atributos do mundo globalizado, e à velocidade das mudanças, exigência do avanço tecnológico. Negociações diuturnas de propósitos, propostas e idéias fizeram-se necessárias. Foi natural e conseqüente o encurtamento da vida média dos produtos e das idéias, assim como das soluções propostas para situações e eventos da vida diária que rapidamente caracterizam-se como desatualizadas.

É nesse cenário transcultural, célere e de tão grande avanço tecnológico que podemos viver mais enquanto somos igualmente obrigados a criar produtos e soluções de vida média cada vez mais curta para que estes possam ser rapidamente substituídos por outros novos e atuais. Esse é o palco para os Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos – MESCs, mecanismos igualmente céleres, capazes de se adaptar às mudanças de cada pequena época e às demandas de diferentes culturas.

Sua informalidade lhes permite acompanhar os tempos, sua flexibilidade lhes possibilita articular culturas, sua velocidade de resolução lhes confere sintonia com a necessária rapidez de solução demandada por esse início de milênio. Quando levamos em consideração os elementos desse macrocenário cultural, identificamos quão interessante é contextualizar as idéias com sua época. Elas costumam ser filhas fidedignas de seu tempo e com ele ter coerência.

A Mediação de Conflitos

A constatação de que oitenta por cento dos processos que ocupavam as mesas dos juízes podiam prescindir do olhar jurídico e beneficiar-se da negociação direta motivou os americanos da Flórida, na década de setenta, a desenharem esse processo de negociação assistida conhecido como Mediação.

Pertencente ao grupo dos Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos, a Mediação está sendo hoje praticada em todos os continentes e chega ao Brasil depois de visitar parceiros continentais como a Argentina, a Bolívia e a Colômbia. Legislada em alguns desses lugares, ela ensaia o mesmo movimento em nosso território.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei de Mediação da Deputada Federal Zulaiê Cobra (no. 4287/98) que aguarda votação após ter ganho redação terminativa. A Escola Nacional da Magistratura e a Ordem dos Advogados do Brasil – SP ofereceram, em outubro de 2002, a terceira versão de um Anteprojeto de Lei de Mediação Paraprocessual, assim denominada por estar articulada ao Processo Civil. Esse texto vem adequando sua redação a partir da interlocução de sua equipe redatora com a sociedade civil e com outras legislações e sítios de prática da Mediação.

Tendo como princípio fundamental a Autonomia da Vontade, a Mediação é recurso para ser eleito por quem está disponível para atuar com boa fé e a rever as posições anteriormente adotadas nas tentativas de resolução do desacordo; por quem preferir participar diretamente da solução a ser eleita e dela ser autor; por quem não identificar instrumento outro de resolução que melhor atenda sua demanda; por quem pretender celeridade e sigilo e quiser ter controle sobre o processo negocial e seus procedimentos; e por quem prezar a relação pessoal ou de convivência com aquele que litiga ou dela não puder prescindir.

A preservação da relação entre os envolvidos no processo de Mediação e a identificação e aprendizado sobre a própria capacidade negocial são ganhos secundários desse processo. A Mediação tem nos interesses comuns dos litigantes e na satisfação mútua o seu objeto. É um processo destinado a articular esses interesses e a buscar atender todos aqueles neles envolvidos, direta ou indiretamente, afastando-os da adversarialidade provocada pelos resultados em que alguém perde e alguém ganha. Ela tem por objetivo a Autoria das partes para a solução construída, elemento essencial da satisfação mútua e da disponibilidade para o cumprimento do acordo dela advindo.

Para elegê-la ou praticá-la é preciso conhecê-la. Aos primeiros – os eleitores – essa oportunidade é oferecida através da Pré-Mediação, ocasião em que o mediador e os futuros mediados trocam informações e esclarecimentos sobre o processo e a matéria a ser mediada. Esse momento precede a assinatura do Termo de Compromisso que caracteriza a sua escolha. Dos praticantes é exigida uma capacitação específica, conhecimento da matéria a ser mediada e isenção de interesses com relação às partes e ao tema mediado. Eles assinarão um Termo de Independência relativo ao seu aceite para a função e à sua isenção de interesses.

Os mediadores são, então, terceiros imparciais assim entendidos e eleitos por todas as partes envolvidas no desacordo. Além da imparcialidade e da competência anteriormente referidas eles devem conduzir o processo negocial com diligência e sigilo. Ao sigilo estão obrigados pelo Código de Ética do Mediador, não podendo dispor, para qualquer fim, do conhecimento da matéria levada para o processo de Mediação. De igual maneira comprometer-se-ão as partes, dando ao sigilo a extensão que deliberarem. A ele obrigar-se-ão todos que participarem do processo de Mediação: convidados das partes, outros profissionais e pessoal do escritório ou entidade que administra o processo.

Especialistas em comunicação humana e em negociação, os mediadores devem estar habilitados para facilitar diálogos em situações de adversarialidade. Eles auxiliam na identificação de interesses comuns e divergentes, na construção de uma pauta de negociação, na análise dos custos, benefícios e repercussões sobre terceiros das soluções propostas, na manutenção do equilíbrio de participação entre as partes e do equilíbrio de conhecimento necessário para ações decisórias de qualidade. A co-mediação – coordenação do processo por uma dupla de mediadores – tem sido utilizada universalmente visando ampliar a qualidade da negociação pela complementariedade de conhecimento dos mediadores.

A Mediação tem sido o método de eleição nas situações de conflito e discordância que necessitam de ação cooperativa, co-autoria na criação da solução e manutenção da relação de convivência e da capacidade negocial no tempo. Em outubro de 2002, foi conferido a Jimmy Carter o Prêmio Nobel da Paz por sua atuação como mediador internacional – especialmente em conflitos bélicos. Relações internacionais, comerciais, empresariais, comunitárias, familiares, de parceria ou de vizinhança podem, em especial, beneficiar-se da Mediação.


Outros Métodos Não-Adversariais de Resolução de Controvérsias

A proposta da resolução não-adversarial, exigência da convivência globalizada, fez ressurgir a negociação e diversificar seu espectro de atuação. Assim como a negociação uniu-se às teorias da comunicação humana e, posteriormente, a outros pilares teóricos recriando a Mediação na forma como a conhecemos hoje, uniu-se também a outros recursos de administração e solução de desacordos dando origem a instrumentos híbridos de resolução de conflitos. A Arbitragem, a Mediação, a Resolução Judicial e a Negociação compõem os ingredientes básicos dos mais recentes instrumentos em Resolução de Conflitos.

O leque de recursos negociais que hoje conhecemos possibilitou que nos distanciássemos de escolhas dicotômicas para administrar nossas contendas – Negociação ou Resolução Judicial, Mediação ou Arbitragem – e nos aproximássemos de eleições feitas sob medida para o nosso conflito ou a nossa questão. Adequação do instrumento à contenda é hoje a expressão de ordem quando tratamos de resolução de disputas. O A das ADRs – Alternative Dispute Resolution, no original – já pôde representar o termo Amicable e, mais recentemente, a palavra Appropriate. Quando dispomos de um leque de opções para dirimir nossas contendas podemos pensar em adequabilidade. É como possuirmos dois pares de sapatos e dois ternos, ou alguns pares e alguns ternos.

O Sistema Multiportas de Resolução de Conflitos _ multi doors system, adotado já por alguns estados americanos, integra o painel de opções da American Arbitration Association e da Câmara de Comércio Internacional – CCI, entidades renomadas no campo da resolução extrajudicial de controvérsias. Ele oferece recursos customizados, tendo sido alguns deles formatados para atuar preventivamente, resolvendo o conflito durante a sua construção, ou antes dela – resolução em tempo real (just in time resolution).

Refletindo a tendência mundial de personalizar os produtos e a necessidade global de atuar em tempo real ao invés de postergar, estocar (vide os parques industriais das montadoras de automóveis que abrigam seus fornecedores para que sejam alimentadas na exata medida das necessidades de um determinado momento da produção), os métodos de resolução de conflitos adequam-se a essa época e às suas tendências.

Reunindo componentes da Resolução Judicial, da Negociação, da Mediação e da Arbitragem, o Mini-Trial convoca o painel formado por um terceiro imparcial eleito pelas partes e por executivos seniores de empresas em desentendimento e distanciados da questão em tela a analisar a defesa apresentada pelos advogados das empresas em questão. Após a referida defesa, a solução pode advir da negociação direta efetivada pelos executivos integrantes do painel, da Mediação entre eles coordenada pelo terceiro imparcial ou de seu laudo arbitral. Esse processo de resolução admite que as sucessivas tentativas de negociação, segundo a ordem descrita, sejam realizadas ou que haja a eleição de uma ou parte delas, conforme determinem as partes.

Utilizando-se dos norteadores da Perícia Técnica, da Resolução Judicial e da Arbitragem, a Avaliação Neutra de Terceiro (Factfinding / Neutral Evaluation)oferece a possibilidade de auxiliar as partes que pretendem negociar ou resolver judicialmente uma contenda a conhecerem a tendência da resolução. O parecer técnico, não vinculante, oferecido por um terceiro imparcial eleito pelas partes pode ser utilizado como base para uma negociação direta entre elas, ou para a escolha de um outro método de resolução. Alguns contextos têm convidado Juízes de Direito aposentados para esse lugar de terceiro imparcial e denominado o instrumento de Rent a Judge.

Os contratos que envolvem múltiplas partes podem valer-se de métodos de resolução de disputas praticados em tempo real e norteados pela expertise de terceiros imparciais, por técnicas de Negociação e de Mediação. Os Review Boards, compostos por um painel de imparciais eleitos pelas partes integrantes de um contrato, acompanham o desenvolvimento de projetos e oferecem possibilidades de resolução para os impasses surgidos durante a sua execução. Na construção civil, esses painéis têm sido denominados de Partnering.

Ainda com relação a múltiplas partes, como é o caso dos conflitos advindos de questões ambientais, a montagem de um processo de resolução que combine diferentes métodos de solução de conflitos pode ser de reconhecida utilidade. Cada vez menos podemos estar presos à idéia de que só existe uma possibilidade de solução para determinada questão, e as questões negociais que envolvem a preservação do meio ambiente são situações-exemplo.

A idéia de atuarmos preventivamente na formação de conflitos fez surgir uma outra possibilidade de resolução em tempo real conhecida como Sistema de Manejo de Conflitos (SMC), instrumento que vem sendo utilizado por algumas empresas. Esses sistemas implicam em mudança cultural na forma de lidar com as diferenças e as desavenças internas e aquelas ocorridas nas interfaces empresariais – relações com os stakeholders. Os SMCs propõem que as diferenças e as desavenças citadas sejam manejadas e administradas dentro dos muros empresariais antes de ganharem exterioridade. Eles atuam como espinha dorsal, atravessando toda a extensão da empresa e contemplando todos os seus segmentos. Convidam os integrantes da empresa, e também seus stakeholders, a tentarem a negociação direta e a mediação já praticadas na empresa – workplace mediation – antes de buscarem os mesmos instrumentos fora dela, deixando a resolução judicial como opção extrema. A idéia dos SMCs está pautada na Mediação, em norteadores de soluções cooperativas e não-adversariais – tal qual a gestão cooperativa – e na co-autoria de decisões.

A Arbitragem integra também o sistema multiportas de resolução de controvérsias e pode estar precedida pela Mediação ou a ela estar formalmente articulada em um processo denominado Med-Arb. A composição Med-Arb pode ser previamente eleita pelas partes, em comum acordo, e solicitar do mediador que arbitre sobre a questão em tela caso a Mediação não possibilite a construção de acordos, ou restem temas por decidir em função de acordos parciais. Esse processo tem sofrido críticas por parte de alguns e suscitado defesa por parte de outros. Os que criticam assinalam a possibilidade de distanciamento da imparcialidade do terceiro imparcial durante a fase de Mediação pelo fato de estar predestinado a atuar como árbitro. Os que defendem ressaltam o fato do processo ser eleito pelas partes e relembram que o terceiro imparcial por elas escolhido foi considerado qualificado a ser imparcial na ocupação da dupla função.

Vale ressaltar que o último texto do Anteprojeto de Lei de Mediação Paraprocessual inclui o sistema multiportas como recurso a ser utilizado pelo Juiz na audiência preliminar em que o acordo não for alcançado. No texto estão citadas a Mediação, A Arbitragem, a Conciliação e a Avaliação Neutra de Terceiro como possibilidades.

 

Conclusão

A tendência mundial de privilegiar a prevenção está nos conduzindo a utilizar como referência negativa a experiência desastrosa oferecida através dos tempos da negociação de diferenças pela força ou pela luta. Em seu lugar, o diálogo ganha importância na composição de diferenças. O lugar de destaque dos diálogos somente pode advir depois que o homem precisou abandonar a idéia de certeza e necessitou tornar tênues as fronteiras entre as culturas. Ele não pode mais deixar de olhar o mundo global e sistemicamente e, portanto, não pode mais abrir mão de soluções e ações cooperativas sob pena de ameaçar a própria sobrevivência.

Os métodos de negociação de conflitos pautados no diálogo são filhos diletos desse tempo e dessa época e surgem em velocidade coerente com aquela utilizada pelo terceiro milênio para a implantação de mudanças. Eles guardam fidelidade com a ética da convivência das diferenças e chegam para complementar o que já conhecemos nesse terreno e não para competir com o existente.

Aprimoram-se, customizam-se, resolvem as questões no tempo real em que elas ocorrem, previnem a formação de conflitos, diminuem a sua permanência no tempo e a sua reincidência. Assim atuam os métodos de autocomposição de controvérsias recém surgidos no cenário mundial.

A revisão permanente de nossas crenças e das formas habituais de lidar com as situações, além da flexibilidade para rever o antigo e acrescentar o novo são exigências do século XXI. Até o término da era industrial, o homem tinha que se adaptar aos produtos oferecidos e se contentar com uma demanda maior que a oferta. Hoje, na era do conhecimento, o foco deixa de ser o produto e passa a ser a(s) necessidade(s) do homem. Dentre as suas necessidades contemporâneas está o aprendizado e a prática do diálogo produtivo na composição de diferenças. São imprescindíveis nesse momento os métodos que facilitam e favorecem esse diálogo e buscam a co-autoria responsável pelo que se vive e se proporciona ao outro viver.

É nesse cenário, com esses propósitos e sob essas exigências, que os Métodos Extrajudiciais de Solução de Conflitos surgem em nossa cultura.

* Texto revisitado em 2006. Publicado nos Anais do Seminário sobre Métodos Alternativos de Solução de Conflitos da Confederação Nacional do Comércio, 2002.