Justiça Restaurativa e Mediação de Conflitos

Tania Almeida
Consultora, Docente e Supervisora em Mediação de Conflitos. Sócia Fundadora e Diretora-Presidente do MEDIARE – Diálogos e Processos Decisórios . Integrante do Comitê de Ética e da Vice-Presidência do CONIMA – Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem

 

Histórico

A Justiça Restaurativa é um movimento mundial de ampliação de acesso à justiça criminal recriado nas décadas de 70 e 80 nos Estados Unidos e Europa. Este movimento inspirou-se em antigas tradições pautadas em diálogos pacificadores e construtores de consenso oriundos de culturas africanas e das primeiras nações do Canadá e da Nova Zelândia. 

O conceito e a filosofia de justiça restaurativa têm embasado programas sociais dedicados a cuidar das vítimas, dos ofensores e das comunidades que os abrigam, e têm orientado para a restauração de suas vidas e de sua interação social.

O ideal restaurativo como proposta de justiça


O poder de síntese e de informação veiculado pelos quadros comparativos nos auxiliará a visualizar um leque de diferenças entre a proposta retributiva e a proposta restaurativa de justiça, demonstradas pelo esquema publicado por Highton, Alvarez e Gregório em ‘Resolución Alternativa de Disputas y Sistema Penal’. 

 

Justiça Retributiva

Justiça Restaurativa

Delito

Infração da norma

Conflito entre pessoas

Responsabilidade

Individual

Individual e social

Controle

Sistema penal

Sistema penal / Comunidade

Protagonistas

Infrator e o Estado

Vítima , vitimário e comunidade

Procedimento

Adversarial

Diálogo

Finalidade

Provar delitos
Estabelecer culpas
Aplicar castigos

Resolver conflitos
Assumir responsabilidades
Reparar o dano

Tempo

Baseado no passado

Baseado no futuro

 

O marcante contraste entre as duas propostas possibilita-nos apreender o potencial preventivo da proposta restaurativa, assim como seu propósito de implicar os sujeitos nos seus atos e em sua resolução – processo de enorme repercussão na pacificação social.

O que é Justiça Restaurativa?

A justiça restaurativa procura equilibrar o atendimento às necessidades das vítimas e da comunidade com a necessidade de reintegração do agressor à sociedade. Procura dar assistência à recuperação da vítima e permitir que todas as partes participem do processo de justiça de maneira produtiva (United Kingdom – Restorative Justice Consortium, 1998).

Um processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima, o ofensor e/ou qualquer indivíduo ou comunidade afetada por um crime participem junto e ativamente da resolução das questões advindas do crime, sendo frequentemente auxiliados por um terceiro investido de credibilidade e imparcialidade (United Nations, 2002).

Após um momento inicial dedicado primordialmente a cuidar das necessidades da vítima através da utilização de programas dedicados à díade vítima / ofensor (Victim Offender Programs), os projetos baseados no paradigma restaurativo passaram a incluir, cada vez mais, as necessidades do ofensor, assim como as necessidades da comunidade. Vítimas, ofensores e comunidades são considerados stakeholders (integrantes de uma rede interativa de pessoas) dos processos e dos programas de justiça restaurativa.


A vítima

Os estudos relativos aos quadros pós-traumáticos que podem acometer as vítimas demonstram que os cuidados a elas necessários transcendem, em muito, a aplicação de penalidade ao ofensor. Contenção emocional, um espaço protegido para expressar medos, temores, mal-estar, sofrimento e raiva, assim como sentimentos e perguntas relativos ao ofensor têm-se caracterizado como parte dos cuidados reparadores às vítimas. 


O ofensor

O movimento circular e recursivo de estarmos sujeito e objeto nos processos sociais tem-nos ajudado a visualizar que os ofensores dos atos presentes são, na maioria das vezes, as vítimas dos atos do passado ou, são, até mesmo, um e outro simultaneamente no presente. A identificação e a análise dos processos biopsicossociais que contribuem para essa mútua interação e influência exigem, de acordo com o marco restaurativo, que intervenções outras, além da punitiva, possam contemplar esses indivíduos e, consequentemente, a sociedade como um todo. 


A comunidade

As micro-comunidades que acolhem e circundam vítima e ofensor, singulares ou múltiplos, ganham, desde o ponto de vista restaurativo, o status de co-partícipes e co-responsáveis no processo de construção do ato penal e no processo de restauração da vítima, do ofensor, da própria micro comunidade e da sociedade como um todo.


Quais são os objetivos da justiça restaurativa?

O objeto de trabalho da justiça restaurativa não é o delito, mas sim o conflito conseqüente ao delito. Esta é uma distinção fundamental. Os aportes da justiça restaurativa são complementares ao tratamento dado ao delito pelo Estado. A pena não dirime o conflito, objeto maior dos programas restaurativos.

A oportunidade de a vítima expor seus sentimentos e percepção relativos ao dano sofrido, de fazer perguntas que compulsoriamente invadem seu cotidiano e de dizer do impacto que o trauma causou a si e /ou aos seus têm sido aspectos entendidos como relevantes para uma atitude reflexiva e reparadora do ofensor e para a restauração da vítima. 

A possibilidade de conhecer o impacto de suas ações e de eventualmente esclarecer que as conseqüências do seu ato transcenderam a sua intenção, bem como o reconhecimento do erro, podem igualmente atuar como diferencial para a instauração de uma etapa de melhor qualidade na história do ofensor, assim como contribuir para o processo restaurativo de ambos, ofensor e vítima. 


Como operacionalizar essa proposta?

De maneira geral, os procedimentos que integram a prática da justiça restaurativa são precedidos por entrevistas individuais com a vítima e o ofensor, acompanhados de seus advogados, caso existam. A participação da vítima e do ofensor no processo restaurativo deve ser voluntária. Eles são esclarecidos sobre os objetivos do trabalho e preparados para nele participarem. 

São três os procedimentos clássicos utilizados nessa qualidade de processo. Eles diferem quanto ao número de participantes, à qualidade de participação do terceiro imparcial, ao alcance social e quanto aos procedimentos.

  • Mediação Penal – A Mediação Penal é todo processo que permite ao ofendido e ao ofensor participar ativamente, se o consentem livremente, da solução das dificuldades resultantes do delito, com a ajuda de um terceiro independente, o mediador. (Recomendación (99)19 del Comité de Ministros del Consejo de Europa – União Européia).

 

A mediação entre vítima e ofensor pode ou não incluir seus familiares como suporte para ambos, tanto no momento da mediação como no comprometimento com as propostas que possam dela advir. 

A mediação de conflitos tem sido o instrumento mais utilizado nos programas de justiça restaurativa e vem comprovando os efeitos já mencionados. Dependendo da cultura aonde é utilizada, seus resultados são encaminhados para o juiz responsável pelo caso, tomando-os ou não em consideração ao elaborar a sentença pertinente ao delito.

  • Conferências familiares – Esse processo é especialmente utilizado quando se deseja dar foco ao suporte que familiares, amigos e outros membros da comunidade podem oferecer ao ofensor, tanto no cumprimento de condutas acordadas com a vítima e com a comunidade, como na mudança de seu comportamento. 

    Representantes do estado podem estar presentes nesse processo de diálogo facilitado por um terceiro imparcial que deverá conduzi-lo de maneira a balancear o atendimento das necessidades de ambas as partes, ofensor e vítima. 

 

  • Círculos de Construção de Consenso – Inspirados em comunidades indígenas, esses círculos de conversa e de construção de consenso envolvem um número maior de pessoas – vítimas, ofensores, seus familiares, a comunidade e os operadores do Direito. 

    Os círculos incluem a presença do juiz e a construção consensual da sentença para o delito. 

    A utilização desses círculos de construção e monitoramento de observâncias transcende hoje o seu emprego a questões relativas a delitos. Estes círculos vêm sendo utilizados em processos de diálogo que envolvem construção de consenso em questões comunitárias e institucionais.

 

Que tipo de conflitos podem ser tratados pelo paradigma restaurativo?

Todos os conflitos em que as partes e as micro-comunidades envolvidas possam beneficiar-se de quaisquer dos instrumentos que tenham como resultados os propósitos restaurativos. Caso esses benefícios sejam identificados como possíveis, os métodos restaurativos podem ser usados em qualquer estágio do processo de justiça criminal. 

A restrição ao uso dos recursos restaurativos diz mais respeito à capacidade reflexiva e à capacidade de reparação e de restauração das pessoas eleitas para participar de processos dessa natureza. 


Conclusão

Entre os extremos do desconhecimento por algumas culturas e o da primeira opção de uso para eventos criminais com adolescentes (Nova Zelândia), os recursos de diálogo que compõem o conjunto de medidas da assim denominada Justiça Restaurativa são uma realidade crescente no mundo contemporâneo. 

Dentre esses recursos destaca-se a Mediação de Conflitos pelo fato dela promover a autocomposição pautada na autoria e na conseqüente responsabilidade no cumprimento do acordado. 

Esses recursos viabilizam uma análise e uma atuação sistêmicas no conflito, possibilitando que atuemos em seus diferentes aspectos e que tenhamos uma ação social mais ampla.